Entre Olhares: Culturalismo conservador

O dom da boa escrita e a habilidade de leitura são dois fenômenos que se completam e podem proporcionar ao ser humano prazeres inenarráveis, incomensuráveis e de grande valia para o seu crescimento e amadurecimento. Foi através desta inter complementaridade que tive o privilégio de acessar o livro A ELITE DO ATRASO (Jessé Souza, Editora LeYa, 2017). Sabendo da dificuldade que nós padecemos por não dispor de uma livraria em nossa cidade, achei por bem extrair alguns excetos para compartilhar com os leitores desta coluna. Assim como pude literalmente gozar de uma êxtase intelectual, espero que o mesmo possa acontecer com vocês.

Jessé Souza inicia afirmando que para se conhecer uma sociedade é necessário reconstruir os meandros do processo que permite a reprodução do poder social real. Para ele, no mundo moderno, quem cria a legitimação do poder social que será a chave de acesso a todos os privilégios são os intelectuais. Neste ponto fez-me lembrar de Gramsci quando ele delineou a figura do “intelectual orgânico”. Percebi então o quanto este pode se tornar um perigoso agente à serviço da dominação e dos dominantes. São citados nominalmente Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, Glauber Rocha, Jorge Mautner, Caetano Veloso, Fernando Henrique Cardoso, Platão e Talcott Parsons.

Para o autor do citado livro, a “limpeza política” que Deltan Dallagnol (procurador federal considerado o intelectual da Operação Lava Jato) advoga para o nosso país é mera continuidade do pensamento e das reflexões de Sérgio Buarque e Raymondo Faoro, ao difundirem a ideia de que o Estado abriga uma elite corrupta que vampiriza a Nação. Isso fez legitimar todas as ações predadoras do Direito e das riquezas nacionais através da Operação Lava Jato. Na realidade esta Operação apenas cumpre o jogo do capitalismo financeiro nacional e internacional que é privatizar todas as nossas riquezas nacionais em determinados bolsos privilegiados.

No livro A ELITE DO ATRASO fica claro que essa é a verdadeira corrupção. O sucateamento da PETROBRAS significa o empobrecimento do país e a inviabilização de qualquer possibilidade do seu reerguimento a nível internacional. É essa ideia de Estado que abriga elite corrupta que legitima a vilipendiação de todas as nossas riquezas (como por exemplo a venda do Pré Sal), por preços irrisórios, tornando invisível a estratégia de apropriação indevida daquilo que pertence a todos nós. Na realidade, a verdadeira elite corrupta está fora do Estado. Nossos político são apenas uma espécie de “aviõezinhos do narcotráfico” incumbidos de legalizar o contrabando.

Como isso acontece? Aí entram em cena as Universidades, os Centros de Pesquisa, a Ciência, os cientistas, as Ciências Sociais e todo o universo do Conhecimento, determinando que imagem podemos fazer e fazemos de nós mesmos. Laureando todo esse trabalho, vem a grande mídia, repetindo, reproduzindo, ampliando e fixando essa imagem na memória do coletivo social. Como bem disse o autor, a mídia não produz conhecimento. É por essa razão que criaram a figura do ESPECIALISTA, que a cada série de reportagens ele aparece dando o seu veredicto sobre o assunto, legalizando e legitimando todo o dito “é a ciência hoje, mais que a religião, quem decide o que é verdadeiro ou falso no mundo”.

O que a imaculada ciência com seus imaculados cientistas fizeram foi fundamentar teoricamente o paradigma do culturalismo conservador da teoria da modernização, exacerbando o racismo científico racial, incutindo em nossas cabeças que a explicação para as diferenças sociais e de desenvolvimento econômico entre as nações era que os seres humanos poderiam ser hierarquizados em classes superiores e inferiores em função do seu cabedal de conhecimentos. Os europeus e os norte americanos chamaram para si a herança cultural do protestantismo individualista como forma insuperável para a constituição de uma sociedade rica e moderna.

EUA e suas agências financiadoras internacionais investiram maciços recursos financeiros e humanos, capitaneando a grande mídia local dos diversos países, promovendo verdadeira lavagem cerebral para convencer a todos nós nativos tupiniquins da nossa inferioridade humana e, consequentemente, moral, para sermos senhores dos nossos destinos. Hoje em dia, nenhum europeu e/ou norte americano deixa de se achar superior aos latinos, africanos e estrangeiros. Por nos acharmos inferiores e desonestos, somos presas fáceis para a expropriação de nossas riquezas.

Não bastasse tudo isso, é importante lembrar que fomos colonizados por uma ideologia teológica romana cristã do sofrimento que incutiu em nossas cabeças o conceito e a noção de uma virtude platônica indispensável à salvação. Milhares de agentes à serviço desta ideologia dominante e dominadora ao longo dos séculos fizeram o seu trabalho diário, silenciosos e doutrinador nos mais diversos rincões do planeta. Diga-se ainda que o culturalismo racista, conservador e hierarquizador se faz presente, inclusive, nas relações de gênero, inferiorizando a mulher. Para se ter uma ideia, das 500 maiores empresas do mundo capitalista, 492 são dirigidas por homens.

É preciso que se diga que nós só podemos construir e reproduzir um padrão de comportamento por força de ideias que nos ajudam a interpretar o mundo. Todas as nossas ações são influenciadas pelas ideias. Quem controla a produção das ideias dominantes controla o mundo. As ideias dominantes são sempre produto das elites dominantes. Enquanto os pensadores norte americanos construíram a sua auto imagem como objetivos, pragmáticos, antitradicionais, universalistas e produtivos, nossa elite científica corroborou para fixar em nossas mentes uma imagem de pré-modernos, tradicionais, particularistas, afetivos, com tendência irresistível para a desonestidade.

É por isso que não conseguimos nos mobilizar para a defesa do nosso patrimônio e nem conseguimos enxergar as falcatruas globais do mercado financeiro americano, que gerou a crise existencial do capitalismo no Mundo em 2008, nas chamadas bolhas do mercado imobiliário.