AMERICANDO: E a terra parou…

Durante a pandemia eu fiz um diário em que tentei expor tudo que as minhas percepções denotavam do que aconteciam no mundo em meio a este caos que nos sobreveio, e o caos pessoal que vivi. Os relatos desses dias têm por título “Quarentena COVID-19: relatos intimistas e reflexivos de 14 semanas de isolamento social”. Deixo o caríssimo leitor com o Capítulo Dois desses escritos. O capítulo Um encontra-se nessa mesma coluna com data de 19 de março de 2021.

 

 E a terra parou…

 “Essa noite eu tive um sonho
de sonhador
Maluco que sou, eu sonhei
Com o dia em que a Terra parou
com o dia em que a Terra parou”

(Raul Seixas, O dia que a terra parou). 

• Escrever…. lembrar…. memória…. Borges diz que uma das funções da memória é esquecer… diz outras coisas bem viscerais… como: “Só aquilo que se foi é o que nos pertence.” , de fato… a memória cumpre uma missão necessária… lembrar e esquecer… e como diria o vate de Sobral[1] “ […] na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais…[…]” (Belchior, Como nossos pais). O passado rebuscado, remexido, silencioso, mas paradoxalmente gritante está lá, na memória, nos consumindo geralmente, às vezes como pertencimento como diz a citação do poeta argentino acima… de fato, o que se foi nos pertence… ficou no passado, mas vive em nós… “ […] como é perversa…. a juventude do meu coração… que só entende o que é cruel…. o que é paixão….” (Belchior, Paralelas). Tais relatos e memórias não possuem pretensão de cientificidade, pudera… tão pouco uma voz de verdade, um discurso correto e certo, porém, tão somente, o sentir de alguém devaneando no tédio de ver o mundo sofrer e sofrer com isso… Não dá pra ficar imune a isso, não há receita pra depois de duas semanas trancafiado, em meio ao cenário social do país, as notícias mundo a fora, ver tudo isso e se concentrar em outras coisas… não… não… não dá… mas estou tentando, embora difícil… isso é uma maneira de gritar… desabafar…

Terminei a última temporada de Prison Break, muito interessante, recomendo, ótimas alusões ao poder estatal, poderes paralelos e influência de pessoas poderosas, recomendadíssimo. Li o livro do Karnal e Valderez Carneiro da Silva, O que aprendi com Hamlet – porque o mundo é um teatro.  Boa análise filosófica e contextual, fazendo alguns paralelos com nossa realidade pós-moderna, recomendo, mas antes, leia Hamlet. Uma biografia de Shakespeare ainda está em andamento, logo falo algo sobre. Ler, café, faxina, compras delivery, filmes e séries são a tônica desses dias… Vamos ao audiovisual, filmes.

Assisti o documentário “Cartas para além dos muros (2019)” que aborda a situação gênesis dos primeiros casos de HIV no Brasil no início dos anos 80 do século passado. O nome do documentário é homônimo de uma obra de Caio Fernando Abreu, escritor, novelista, morto em consequência da doença. Uma abordagem muito interessante; o passado, o presente, a forma de contexto social do ontem, do agora, o estigma dos infectados, a pouca informação no início da epidemia, a ignorância do assunto em relação ao que sabemos hoje, o preconceito, o medo, enfim, achei muito interessante e sobretudo muita coisa parecida com o que estamos presenciando no nosso atual contexto em relação a um mal que ataca a humanidade. O fato de concepções religiosas sempre presentes é algo que também temos ontem e hoje. Vi também o filme “Terra de minas (2015)”, o filme aborda o final da Segunda Guerra Mundial em que alemães prisioneiros de guerra na Dinamarca são recrutados para desativar cerca de 2 milhões de minas terrestres na costa oeste dinamarquesa. Dos quase 2 mil soldados alemães quase metade morreu ou ficou gravemente ferido. O sargento Carl Rasmussen comanda um destacamento desses prisioneiros de guerras no desarmamento de minas, um grupo de soldados praticamente meninos adolescentes. Muito interessante a trama, a angústia e o devir ocorrido no comportamento do sargento para com os prisioneiros. Vale a pena assistir.

Depois… nesses entediantes dias de medo, preocupação, café, leituras, filmes, séries, faxina, café outra vez e conversas no zap, tive por via deste, um pedido de ajuda. Uma amiga me disse que o orientador dela, nesses caóticos dias não a respondia e me enviou um print das mensagens. Acho que ela perturbou bastante. Ela queria saber o que faria, outros professores também não estavam lhe respondendo. Analisando o contexto eu a disse que ele estava se sentindo incomodado e ela esperasse, pois era flagrante que o tal professor estava ignorando-a.  Pois bem… no outro dia, como que ideias telegráficas, essa amiga me enviou uma mensagem sem pé e sem cabeça que falava do professor, enviei como resposta um ponto de interrogação para que ela me explicasse, de fato eu não me lembrava mais, e acho que havia sito na madrugada do dia anterior, mas esses dias, as horas, a percepção de tempo, ir pra cama, acordar, as refeições e outras coisas já não estão mais regradas. Ela disse “deixa pra lá” e seguramente se sentiu… Deixei um prazo de um dia no ar o sentimento… e puxei conversa pelo zap assim, aliás, puxei conversa não, veja aí:

“As ilusões do outro são tão importantes como as minhas… ou você vive o que de fato você acredita, pensa e põe em prática ou sabotará sua mente. Quando se faz isso, sabotar a mente, cria-se um universo íntimo psicológico do ser ou do querer ser, mas o não sendo de fato; você é, mas no fundo não é e seu subconsciente não deixa barato…. ele sabe, e sabotar a mente vai causar muitas coisas… coisas que não podemos medir a dimensão… acho que esse assunto você sabe mais do que eu e sabe também como eu, uma vez que temos traumas, eu poderia inverter as coisas… te deixar se sentir culpada ou outro…, mas eu sou chato…. muito… normalidade não é minha nota, tom… ou ritmo…, mas educadamente ouvi um fato, o fato de sua ansiedade em receber ok ou não ok de tarefas acadêmicas… Já passei por isso e perturbei muito mais do que você os professores, a ponto deles me atenderem logo, se não se tornava um problema pior… Então…. ouvi… sugeri e educadamente lhe disse que você estava sendo uma chata com os professores, quando disse: ” Então acho que é claro que eles estão lhe ignorando, aceite “. Te ouvi, sugeri, enfim…. no meu maravilhoso tédio de uma quarentena de filmes, séries, leituras, café, preocupações com minha mãe e outras coisas como brigar com meus demônios, tentei…. mesmo te achando bem infantil geralmente – sou chato, obrigado – tentei lhe ajudar….

Depois…… o urubu gira dos infernos dos cacoetes da minha mente visualiza uma mensagem sua… Aí…. como somos extremamente íntimos, bem íntimos e eu sou super, mega, ultra, hiper ,top, macro, plus, big, fit fit simpático com você e com os urubus e porcos espinhos do mundo espiritual redeglobiano do nosso organizado pais… acho que ia esquecendo o que ia dizer… voltei pra terminar… sim, como somos bastante íntimos… acho que até dormimos juntos semana passada… você envia um print! Toma tua merenda…. aí eu não entendi… posso? Alô? Creuza? Fabiana, é tu mulher?  Oi? Eu, embora não fume maconha, acho que é o café mesmo… parei de ver Prision break, com o lindo Michael Scofield e te perguntei “?”, pra você ser mais específica…. aí levei um coice… Eu pensei que tu era eu e eu era tu ou nós era eu! Beleza…. pense… foi boa…. juntando ainda…. não… deixa pra lá… tudo isso pra dizer… desculpa aí mah… foi mal… não lembrei … pedi explicação…. é isso… pode o mundo virar um the walking dead e não é bom ficar assim… não faz bem pro fígado… tá okey?”[2]

Após isso ela riu, eu também e ficou tudo certo, ainda bem…

• Após mais café, faxina e eu me preocupando com as ações de minha mãe, teimosa…. e outras coisas que o enfado desses dias de tempo, mas tempo que queríamos que passasse logo, e tal guerra biológica se resolvesse e muitos de nossos irmãos mundo a fora fossem poupados; comecei o trabalho remoto de ensino à distância… Filosofando um pouco, sempre achei que a educação é algo longe do povo, da massa, dos filhos dos trabalhadores… estes… coitados, coitados de nós filhos de trabalhadores. Karl Marx[3] muito bem enfatiza que as ideias dominantes são as ideias da classe dominante, quem quiser fique à vontade pra perder a eternidade provando que não; nós, proletários, nome técnico para explorados e trabalhadores, aliás, trabalhadores explorados, queremos ser como os filhos dos ricos, não temos consciência de nossa condição de subalterno que faz tudo e não tem nada. Eduardo Marinho, não o da plin, plin, outro, filósofo de rua, como chamam, prefiro chamá-lo como a voz rebelde que precisa ser ouvida, pois fala porque viu, sentiu e entende, diz “por tão poucos terem tanto é que tantos têm tão pouco”, ainda categoricamente explica em um documentário no YouTube de nome Observar e Absorver, diz que tudo é feito pela mão do pobre, as ruas, as paredes, quem liga as luzes das fábricas, quem bota pra funcionar, quem paga mais imposto, pois a carga tributária é financiada por impostos e os pobres por serem maioria pagam mais impostos e são o sustento do Estado. Mesmo assim, com tudo isso, os pobres são ignorantizados, humilhados, roubados, negligenciados em relação aos seus direitos de educação, saúde, segurança, moradia e comida… Deixa claro o pensador que o Estado, tal como é manipulado e orquestrado pelo capital financeiro, é essencialmente, criminoso. Grande Eduardo, espero um dia tomar umas com você.

Voltando… momentos reflexivos revoltantes, ok provável leitor? Perdão…, mas é fato, o povo é surrupiado de seu direito ao saber, pois o saber transforma vidas, mas como estava dizendo, o trabalho remoto foi iniciado, elaborei resumos, atividades e videoaulas para os meus educandos. Enviei, depois participei de uma reunião pedagógica por videoconferência, a primeira da minha vida… a situação é complicada, ontem, o governador do Ceará decretou por mais 30 dias a suspensão das aulas nos estabelecimentos de ensino do estado… mais leituras, café, filmes, séries, diário, café, tédio, compras delivery… café… meu Deus! Estou a lembrar alguns versos de Augusto dos Anjos… “ Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia/ Que se escapa da boca de um cardíaco.”[4], um peso em minhas costas… uma dor sem jeito no peito… a angústia por não saber o amanhã, o egoísmo nosso de cada dia… muitos de meus alunos iam pra escola pra comer – a escola é em tempo integral – muitos nas favelas podem morrer… muitos idosos em risco, eu posso morrer… meu Deus! Meu Deus! Retira do mundo a tua fúria Pai Eterno! Socorro…… das camadas mais íntimas do meu ser o filtro cristão vem à toma… Deus meu… Deus de meus pais… Pai eterno… muitos estão com fome, sem emprego, na chuva, sem casa e o Corona à espreita…  enquanto vida soprar em nosso ser não nos dê apenas a vida, mas o livramento, como também Salomão[5] diz, não nos dê bens demasiados para esquecermos de Ti, nem tão pouco nos ponha na total desolação do Corona, para que não venhamos a duvidar da tua misericórdia… merecemos o caos… merecemos padecer… o que nós, enquanto espécie fizemos com a natureza, qualquer adversidade é pouca… mas Pai… não nos abandone…. Tu, nesses momentos, é o que nos resta….

Em meio a tudo isso os políticos brasileiros aprovaram ajudas financeiras para trabalhadores informais; patrões e empresários gananciosos pedem e pressionam governadores para reabrirem o comércio, pois o comércio que está a funcionar são as atividades essenciais – farmácias, postos de gasolina, mercantis, açougues – quem vai comprar sapato, eletrodomésticos, roupas com medo de morrer ou ficar muito doente? Quem? Abrir pra quê? As insanidades na cena política do Brasil foram ao cúmulo da alienação em 2018… sem comentários… perdão, insanidade e alienação por colocar vocês nesse parâmetro comparativo, devaneios meus em meio a um misto de preocupação e revolta.

É isso, vamos esperar que Deus provenha, que os homens de ciência em grande empenho encontrem as formas necessárias pra vencermos este mal! Tenhamos fé mesmo que você não acredite em um deus, mas fique na torcida, embora o deus das religiões mundo a fora e aqui também seja o comércio, meio de vida, picaretagem envolta em psicologia barata pra jogar e enganar a fé de pessoas inocentes. Muitas igrejas são o antro do circo da emoção barata, venda de ilusões, apelação em cima da fé alheia… Por que as igrejas não estão abertas, a despeito de proibições, pra fazerem milagres e curarem as pessoas enfermas? Se desse certo o governo deixava! Por que as igrejas que prometem cura não enviam seus ministros “cheios do espírito”, como eles dizem, para curar as pessoas na China, na Itália e Espanha? Sabe por quê? Porque é tudo mentira… e pior, Deus sabe…. teologia coaching… da prosperidade e autoajuda, nada contra, mas tal mecanismo didático é melhor ser empregado em empresas de venda, não em igrejas que servem pra enganar e jogar com a fé de gente inocente… por isso, caro leitor, a educação é tão negada, a ignorância é “uma benção”, o conhecimento revela coisas que os donos do poder não desejam… Você precisa de uma religião, de uma filosofia de vida, de fé, muito importante, Deus é um relacionamento íntimo, precisamos dessa força que não entendemos, mas acreditamos, ou dizemos que acreditamos, mas o conhecimento é essencial… até porque Deus, para os que acreditam, dotou o homem de uma mente fabulosa para este usar a cognição, pra desvendar mistérios, pra entender a Ciência…

Até o momento, 01 de abril de 2020, o Brasil registra 6836 casos de coronavírus e 201 mortes, conforme a Folha de São Paulo; o G1 diz que temos 244 mortos e 6931 casos. Voltarei as minhas leituras pra esquecer, tentar esquecer disso… depois falo das leituras… até… 

• “Para o mundo que a gente vivia não vamos poder voltar”, Átila Iamarino, sobre vida pós–coronavírus no programa Roda Viva da TV Cultura na segunda-feira, 30 de março de 2020.

[1] Expressão atribuída poeticamente ao cantor e compositor Belchior referenciando suas canções trovadorescas e cidade natal.

[2] Fragmento de uma fala durante uma conversa via WhatsApp/Zap

[3] (1818-1883) Foi um filósofo, sociólogo e revolucionário influente no movimento comunista, oposição ao capitalismo.

[4] Fragmento retirado do livro Eu e outras poesias (ANJOS, 2008, P.38).

[5]  Bíblico – Foi rei de Israel e autor do Livro de Provérbios, de Eclesiastes e de alguns Salmos.