Entre Olhares: Esse foi só mais um tiro que…

Esse foi só mais um tiro que culminou a História de Morte em Vida de milhões e milhões de brasileiros excluídos, segregados, separados, apartados, proibidos e impossibilitados de exercer plenamente seus direitos e deveres civis, constitucionais, legais, inalienáveis e consagrados pelas letras que já nascem mortas nos Plenários das Casas do Povo (Câmaras, Assembleias Legislativas, Câmara e Senado Federais) e são devidamente sepultadas e veladas por aqueles que vestem uma Toga Preta, para melhor representar o nosso luto.

Esse foi só mais um tiro que fez completar a estatística de 10 Estados da Federação e o assassinato de mais de duas dezenas de pessoas, todas elas militantes e no exercício do cargo de liderança nos mais diversos Movimentos Sociais deste país. Movimentos estes defensores, transgressores, intransigentes, ameaçadores, questionadores, subversivos, sublevantes, denunciadores, incomodadores e inaceitáveis aos olhos, ouvidos e formas de pensar daqueles que usurpam, exploram, expropriam e entregam nosso sangue, nosso suor, nossas vidas e nossas riquezas aos abutres e intrépidos sangue suga.

Esse foi só mais um tiro que deu continuidade ao velho histórico de violência e truculência da jagunçada moderna que já não veste mais o gibão, nem usa chapéu de couro. Pelo contrário, os modernos jagunços usam terno, gravata, celular de última geração. No lugar da botas de couro, usam caríssimos sapatos de camurça. Já não montam mais em jumentos. Criaram asas, voam em todas as direções. Não se contentam mais com pequenas botijas. Roubam aos milhões. Já não fazem mais oposição aos ricos. Matam aos milhares aqueles pobres ousados que não sabem reconhecer o seu lugar.

Esse foi só mais um tiro que vai fazer parte da memória esquecida que já acumula tantos outros tiros que foram disparados e ceifaram a vida, a carreira, desestruturaram as famílias, deixaram órfãos, famintos, abandonados, desamparados, traumatizados, amedrontados, enlouquecidos, errantes, berrantes, enfurecidos, descontentados mas, resignados, calados, emudecidos, acomodados, desistentes e resilientes com esta força bruta que nos é imposta sob a égide, complacência, benevolência e aquiescência dos Poderes Constituídos para ZELAR e não VELAR a vontade soberana da grande maioria excluída e despossuída.

Esse foi só mais um tiro que demonstra a inexorável força e vigência da inapelável LEI DO SILÊNCIO. Soberana e que se sobrepõe a qualquer outra, de qualquer natureza. Não há magistratura maior e mais imponente do que a MAGISTRATURA DO GATILHO. Infalível, imbatível, inquestionável, certa, certeira, costumeira, rotineira, ceifadeira. Ela cumpre de forma brilhante o seu preciso papel de apaziguar, atenuar, arrefecer, acalmar, tranquilizar, deixar em paz e no sossego a vida daqueles que vivem sendo incomodados por aqueles que morrem insistindo na imperiosa necessidade de se colocar limite à ganância, à acumulação desenfreada, inútil.

Esse foi só mais um tiro que faz relembrar simplesmente que esta tem sido a prática corriqueira no Brasil desde os remotos tempos da Colonização. A autoafirmação eurocêntrica nos foi imposta empunhando-se as armas de fogo do Império Lusitano. O Brasil Império foi embalado ao som das bazucas. A República foi imposta pela Classe Dominante através da força das armas. Canudos, Caldeirões, Araguaia, Quilombos, Posseiros, Seringueiros, Ribeirinhos, Atingidos, Assentados, Reassentados, Desalojados, Sem Terra, Sem Teto, Desempregados, Escravizados, Retirantes, Sindicalizados, Povos Tradicionais, Indígenas são aquietados pela força do chumbo.

Esse foi só mais um tiro que veio anunciar a premissa de que outros tiros ainda virão. Sempre que se fizer necessário nenhum tiro será poupado. Nenhuma vida terá qualquer significado. O importante é a garantia da Ordem e do Progresso. Custe o que custar. Até por que é o Estado quem compra, paga, contrata, treina e faz cumprir as ordens de execução sumária, à queima-roupa, sem piedade, sem possibilidade de sofrimento para o alvo a ser eliminado. E isso faz lembrar a compaixão. Já são pobres, miseráveis e de tudo destituídos. Para misericórdia, serão eliminados de uma só vez, destituídos do direito de socorro, a fim de que seja posto fim a todos e aos sofrimentos.

Esse foi só mais um tiro que trouxe alento, fôlego, coragem, ousadia, vontade, impulsividade, teimosia, valentia, bravura, inconformidade, resiliência, resistência, força, fé, esperança, crença, reforço, convicção de que outros tiros terão que ser disparados. Não por armas de fogo. Não por exímios atiradores contratados, pagos e treinados pelo Estado privatizado. Não será a munição composta por chumbo e níquel. Os soldados atiradores não sairão das trincheiras das Forças Armadas (sejam Estatais e/ou Paraestatais). Os novos tiros serão disparados por soldados preparados nas trincheiras da EDUCAÇÃO. A munição será composta por argumentos críticos, epistemológicos, sociológicos, filosóficos, antropológicos, gnosiológicos.

Esse foi só mais um tiro que veio para demonstrar a necessidade da execução sumária da pretensão, da ignorância, da subserviência, da prepotência, da ganância, das fobias, do preconceito. Urge por fim à privatização do Estado. Urge nacionalizar a República. Urge banir a baditagem que tomou de assalto nossos instrumentos de vivência e sobrevivência. Urge publicizar a coisa pública. Urge desprivilegiar os privilegiados. Urge privilegiar os desprivilegiados. Urge devolver aos verdadeiros donos tudo o que lhes foi expropriado. Urge reassumir o controle de tudo o que foi descontrolado. Precisamos de uma salva de tiros para a DEMOCRACIA.