Brasil
A calcinha menstrual ‘à brasileira’ criada por três universitárias
No passado, a menstruação era para elas motivo de vergonha – e ocultada em pequenos gestos como o de esconder o absorvente na manga da camisa no caminho do banheiro ou não falar do assunto com parentes homens. Mas hoje, as estudantes Raíssa Kist, de 23 anos, Francieli Bittencourt e Nicole Zagonel, ambas de 25, colocam o tema em primeiro plano – ele motiva um projeto que está definindo as trajetórias profissionais e pessoais das jovens.
Oficialmente uma empresa desde março, a marca Herself, pilotada pelas estudantes, tem por enquanto como carro chefe dois modelos de calcinhas menstruais – peças íntimas reutilizáveis que absorvem a menstruação. A calcinha combina três tecidos com propriedades antimicrobianas e impermeáveis. Na zona íntima, a camada interna é de algodão.
O item começou a ser desenvolvido pelas jovens no final de 2016 e ganhou impulso com uma campanha de financiamento coletivo no site Catarse há quase três meses – que já superou a meta inicial de arrecadação em 50%. A expectativa da campanha era arrecadar R$ 30 mil, mas mais de 340 pessoas já contribuíram e a soma já chega a mais de R$ 46 mil.
O interesse indicou que o projeto, mesmo quando ainda era um embrião, tinha potencial. Kist e Zagonel, estudantes de engenharia química na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), participavam de um curso de capacitação em negócios socioambientais e buscavam soluções que reduzissem o uso de descartáveis no mercado de cosméticos.
Nesse meio tempo, apareceu mais um forte sinal de que havia, ali, um nicho a ser explorado, com a repercussão do um post da nutricionista e apresentadora de TV Bela Gil em que ela contava ter passado a usar uma calcinha menstrual importada dos Estados Unidos.
“Entramos em contato com algumas mulheres para entender incômodos e como elas vivem a menstruação no dia a dia, e percebemos que havia uma busca por novas soluções nessa área. As mulheres não estavam satisfeitas com os absorventes, mas por comodismo e falta de opções, acabavam recorrendo a eles”, afirmou Kist em entrevista à BBC Brasil.
Em contato com estas mulheres, as estudantes passaram a aplicar questionários online e desenvolver testes com protótipos de calcinhas.
Segundo as estudantes, a decisão por produzir calcinhas menstruais foi motivada também pela dificuldade, relatada por algumas mulheres, na adaptação ao uso de outra nova alternativa aos tradicionais absorventes: os copinhos menstruais, produtos reutilizáveis geralmente de silicone, em formato de copo e de uso interno.
As calcinhas menstruais só chegaram ao Brasil neste ano – a marca Pantys também passou a vender o produto no país, além da Herself, que por enquanto está entregando somente calcinhas oferecidas como recompensa na campanha de financiamento coletivo. Lá fora, a Thinx, marca usada por Bela Gil e precursora do produto, também foi criada por três amigas, de Nova York.
Experiências internacionais fizeram parte dos estudos para o desenvolvimento do projeto pelas jovens, mas desde o início elas pensaram em um produto 100% brasileiro – seja na mão de obra à adaptação ao clima.
“Compramos os produtos do exterior para conhecê-los, mas, lá fora, o corte das calcinhas é mais largo e tem a cintura mais baixa, e o corpo [das estrangeiras] também é diferente. Pelo clima tropical do Brasil, a calcinha tinha que ser mais fininha e leve”, lembra Kist.
“Toda a tecnologia foi desenvolvida no Brasil. Para garantir a procedência e a sustentabilidade do produto, fazemos questão também de ter fornecedores próximos, sabendo como é a qualidade de vida deles”, afirma a estudante, citando fornecedores do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.
Por enquanto, as três estudantes estão se virando na logística, administração e comunicação da marca – mas, entre terminar a faculdade e tocar o negócio, já estão pensando em aumentar a equipe. É que em dezembro a Herself deve dar um salto, lançando um site – para a venda das calcinhas e possivelmente outros produtos afins -, ainda mantido em segredo por elas.
“Houve um vácuo na evolução dos protetores menstruais, com uma carência de anos na inovação da vida menstrual. Pelo tabu, as mulheres não falavam, e o mercado desconhecia as reais necessidades delas. O diálogo que estabelecemos com as mulheres no processo nos mostrou o que era realmente importante para elas”, conta Bittencourt, estudante de história também na UFRGS, onde tem se dedicado a estudos sobre questões de gênero.
‘Natural’ do século 21
Para Justine Carta Hess, da consultoria Kantar Futures, um produto como a calcinha menstrual é emblemática de tendências turbinadas no século 21 – destacando-se o feminismo e a sustentabilidade.
“O excesso de interações e compartilhamentos nas mídias sociais, entre outras coisas, permitem também que a cultura do tabu, da vergonha, seja conversada. Por outro lado, um projeto de crowdfunding abre mercados para estas novas conversas, quando no passado é claro que eram os homens que majoritariamente tinham a palavra sobre os produtos e negócios”, disse Hess à BBC Brasil.
“Esta nova geração, que chamamos de centennials, tem muito acesso a informação e consideram bastante o custo-efetividade dos produtos. E, diante dos custos financeiros e ambientais dos absorventes tradicionais, produtos como as calcinhas menstruais fazem muito sentido”.
Por outro lado, a consultora Christine Pereira, da Kantar Worldpanel, destaca que no Brasil a grande maioria das mulheres ainda recorre a métodos tradicionais para lidar com a menstruação. Segundo dados da consultoria, a penetração nos lares brasileiros é maior para os absorventes externos (em 76% dos lares da amostra em 2016), seguidos do absorvente interno (24%) e do protetor de calcinha (6%). Esta última categoria, porém, tem crescido no longo prazo.
“As jovens entram no mercado pelo absorvente externo e, com o avanço da idade, há uma mixagem, principalmente nas classes econômicas mais altas, com o uso de absorventes internos e protetores de calcinha. Dentre os produtos existentes há inovação, com diferentes tamanhos, larguras, presença de abas ou não e adequação a diferentes estágios da menstruação”, afirma Pereira.
Fonte: BBC