Dia-a-Dia com Maria

O PRESIDENTE E A SUCURI

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Excursionando num Cruzeiro pelo Rio Negro, Temerário e seus quatrocentos cocanalhas seguiam. Tudo era festa, pago em dólar maciço a custo zero para os turistas. O “tampão” reservara para si um camarote triplo, com banheira de hidromassagem e tudo o mais que apenas mil dólares diários pagar-lhe-iam as despesas individuais. Ao seu bolso, custo zero.

Parecia um sonho de Curupira vencido, romper aquelas águas do oceano doce, do qual se sentia praticamente o dono.

Mas o destino de vez em quando aponta seu dedo sacana e apronta. Como o navio estava em rebuliço e era alta noite, o idoso decidiu ir dormir, fechou-se no seu luxuoso espaço e tirou a roupa pesada ficando apenas de ceroulas verdes que mais se assemelhavam a uma folha de parreira cobrindo Adão encarquilhado.
Esticou-se no camão e cochilou.

Enquanto isso, no salão, rolava muito pó e cachaça importada: Weber Haus, Jonh Bull e outras bebidas valentes. Música alta, no máximo, nesse cenário de balbúrdia, muitos se passavam e se trocavam. O Never consumia o quinto papelote. Cenário de Baco nas águas turvas.

No seu canto, Temerário abre um olho e vê uma novilha de sucuri deslizando debaixo da cama próxima à porta de saída. Sabendo que gritar não adiantaria e até podia acelerar a sede da serpente de abraçar-lhe infinitamente, preferiu lançar-se às águas com seu colete.

De onde estavam, avistava-se luzes por ser próximo a Maués. Nadando na escuridão e rezando por santos que até então nunca imaginara, o quase ateu se deu à fé, pediu ao Chefe Supremo que lhe livrasse do destino de Domingos Montagner, até que nessa nova performance devocional, alcançou a margem e escapou ileso dos remansos, das presas afiadas dos crocodilos e das rodilhas serpentinas.

A partir daí, corria feito louco, chegando a tropeçar e se espetar num garrancho de arbusto, cair numa poça de lama, levantar-se capenga e, mancando, chegar sujo e espantado num prostíbulo onde apenas uma recepcionista malemolente estaria.

Sem receios e supondo estar diante de algum náufrago do Rio, olhara com desdém aquele ser estranho que se dizia ser o que era, enfim, mas que ela não lhe dera o menor crédito, porém, resolveu levá-lo ao posto de saúde pertinho do cabaré.

A mulher desconfiava tratar-se de algum drogado, tentando escapar e, sem mais delongas, evitou ouvi-lo. Só podia estar “delirando”.

Chegando ao posto, estava apenas o guarda, jeitão indígena, sonolento, que mandou o piradão se aquietar e se deitar sem fazer “zoada” num colchonete sujo de bosta seca e manchas envelhecidas de sangue. Era tudo o que tinham em termos de conforto para os pacientes. Temerário, meio assustado, obedeceu às ordenanças e refletiu se aquilo era mesmo verdade ou um pesadelo amargo. Lembrou-se de seu camarote tão nobre, da cobra lhe cobiçando… de Marcela, do conforto planaltino, de tantas coisas, e agora, já se sentia meio sem identidade, ali, jazendo feito um qualquer “Miguelzim”.

Mas dona “Nobel”, a daminha do prostíbulo que ganhara a alcunha num campeonato de doação corporal há anos, tempo de favoritismo perdido pela guerra das pelancas, decidiu chamar a zeladora do postinho, que também era auxiliar de tudo, inclusive de enfermagem, para dar uma ajudinha no paciente impaciente, “o veim da bunda seca”, com ares debochados de puta habituada.

Ao chegar lá, a zeladora olhou o ancião e teve dó de seu estado, sobretudo por “delirar” e insistir em dizer que era o “Presidente”. Mandou ele calar a boca que ia trazer um chazinho de erva cidreira ou de ayahuasca “Chá do Santo Daime”, de gosto muito amargo e cujos efeitos mais comuns são vômito e diarreia, além de alucinações e visões místicas.

Ligeiro preparou a infusão e misturou a um resto de medicamentos que tinham nas prateleiras vazias da unidade, para acalmar o velho, um Gardenal e uns pedacinhos de Rivotril. Pôs um pouco de açúcar para o paciente suportar, de modo que o vencido “chefe da nação” tomou mais por estar com frio e medo daquele povo “bruto”, diferente de seus legitimados.

Enquanto isso, no navio a maraca cantava, tinha parlamentar invertendo as peças, e se dando, onde pó e fumaça de um mato que o gueto bem conhece eram os maiores laceadores.

Poucos minutos após a ingestão do chá, o velhinho delirava e repetia “MACELA”, “MACELA”… nisso, a mulher que o servira, sem entender bulhufas, compreendeu que ele queria mais chá amargo, preparando-lhe outra infusão, a da dita “Macela”, benéfica e bastante utilizada para Azia, cólicas intestinais, desordens menstruais, diabetes, dor de estômago, epilepsias, nervosismo, resfriado, retenção de líquidos, dentre outros usos.

Chapado como estava, tomou de colheradas dadas pelo guarda da unidade, sem a menor delicadeza, que lhe socava a colher suja no bico, e o idoso só engolia.

Adormeceu como uma criança vencida.

No dia seguinte, altas horas, um dos tripulantes do navio resolveu procurar o Presidente e não o encontrou. Em seu lugar, enrodilhada, a dita cobra que o fez conhecer melhor uma parte do Brasil-Norte, oportunizando-lhe um estágio em termos de humanismo. Foi um alvoroço, “Excelência” sumira!

Ligaram para as rádios, imprensa, em três minutos o mundo sabia da possível tragédia.

Enquanto isso, chegara o médico plantonista do postinho que atendia apenas duas horas a cada quinzena, pago pelo SUS para cumprir jornada de 6 horas diárias, salário de 12 mil reais e, sabendo da notícia, reconhecera o ‘benigno Presidente’, fez contato com os órgãos buscadores da autoridade máxima do país, devolveu-lhe são e salvo ao poder e passara a ser tido como herói a partir desse fato. De imediato, transformaram o devassinho em “Secretário de Saúde do Estado do Amazonas”, um sujeito sem a menor probidade, irresponsável e de índole safada como os que se devoravam no navio milionário sobre o Rio Negro.

(M. Lopes)

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