Nijair Araújo

Brasilidade: As pedras e o trote

Published

on

No início da noite a viatura de combate a incêndios do nosso aquartelamento foi acionada para debelar focos de incêndio numa comunidade de Iguatu. Considerando-se a peculiaridade da ocorrência, solicitamos o apoio da Polícia Militar.

A viatura chegou ao local, verificou que os fatos eram reais, não era trote; estabeleceu uma linha de mangueira para a realização do atendimento e aguardou a chegada dos irmãos policiais militares, antes do efetivo combate. Iniciaram o ataque. De repente, pedras. Apesar dos riscos, o combate não foi interrompido. Mais pedras. Os agressores, felizmente habitantes de um país onde reina o Estado Democrático de Direito, não se intimidaram. Resultado: para-brisa da viatura quebrado e um bombeiro que, se não estivesse devidamente protegido, utilizando o equipamento de proteção individual – EPI, teria sido alvejado com duas pedradas diretamente na cabeça.

Entendemos os anseios dos manifestantes e a legitimidade das insatisfações. Entretanto, entre o direito de protestar e a inconsequente ação delituosa de danificar o patrimônio público, existe imenso abismo. Em Iguatu, apenas a viatura apedrejada é capaz de atender a ocorrências de incêndio. Os bombeiros que estiveram no local, resignados, buscavam garantir o direito de ir e vir dos cidadãos que transitavam nas vias interrompidas pelos manifestantes.

Não desmerecendo o previsto no art. 163, parágrafo único, III, do Código Penal Brasileiro, que tipifica o dano qualificado contra o patrimônio público, mas enfatizando apenas os efeitos reais das ações impetradas contra nossos comandados, reputo que a baixa da viatura deixaria 21 cidades da região sem atendimento: a comunidade estaria, portanto, desassistida, sem a proteção que espera encontrar no atendimento que prestamos. A viatura passará por manutenção. Nesse período, infelizmente, a região ficará descoberta e o pior: sendo impossível prever o dia e o horário dos acidentes, ficaremos à mercê da sorte e dependentes do auxílio de quartéis de bombeiros de outas cidades, como Juazeiro do Norte, Crato e Quixeramobim.

Depois que a viatura retornou para o quartel, o comandante da guarnição, ST Uchôa, dirigiu-se até a delegacia para formalizar o dano, valendo-se de Boletim de Ocorrência. Minutos depois, somos apunhalados por outra infeliz realidade nacional: o trote.

Numa ligação, uma mulher que aparentava voz de senhora, voz madura e serena, acionou nossa viatura de Resgate para atender a uma vítima que estava sangrando ao solo, depois de ter sido assaltada. Foram três ligações. Em todas, a senhora se mostrou tranquila e convenceu nosso telefonista de se tratar de fato verídico. Nossos homens, profissionais que trabalham vinte e quatro horas, ininterruptas, deslocaram-se para a viatura, ligaram as sirenes e partiram. Acionamos a Polícia Militar. Em minutos, duas viaturas do Estado, pagas a duras penas por nós, contribuintes, estariam rodando, sem sucesso, graças ao espírito aventureiro de uma mulher, pelas ruas da cidade. Entre as ligações e o retorno do nosso Resgate, trinta valiosos minutos que seriam cruciais para quem, no mesmo período, necessitasse de real atendimento emergencial.

Nosso ordenamento jurídico, art. 340 do Código Penal Brasileiro, também tipifica tal ação delituosa, quando a autoridade é motivada a agir em razão do comunicado da ocorrência de crime ou contravenção, tendo o autor a consciência de que o fato não se verificou, impondo, para tal ação, pena de detenção, de um a seis meses, ou multa. Sentido convergente há no art. 266 do Decreto Lei nº 2.848/40. Entretanto, assim como no ato tipificado anteriormente, voltamos nosso olhar não para a Lei, em sua literalidade, mas para a conduta humana, lato sensu. A construção da lei se dá pela ação antrópica. A manutenção da paz social também. Para que tenhamos um mundo melhor, precisamos de melhores homens.

As ruas serão limpas depois que cessarem as manifestações. O para-brisa da viatura será consertado… Todavia, sem a real consciência do respeito que devemos ter para com o outro, nossa relação de convivência estará sempre fragilizada, dificultando o maior anseio de todo ser gregário: o bem-estar.

*Por Nijair Araújo Pinto – TC QOBM
Cmt do 4º BBM – Iguatu

EM ALTA

Sair da versão mobile