Americando: Os primeiros dias…

Há exato um ano, mandaram-me para quarentena devido a este vírus que abala o mundo todo e nos confinou. Em meio a esse estado de coisas, passei a redigir um diário, e o fiz até o Brasil bater a cifra de 1 milhão de casos. Hoje, após um ano, a situação continua muito trágica e muitos de meus temores mensurados na primeira semana do diário já se confirmaram. Os relatos desses dias têm por título “Quarentena COVID-19: relatos intimistas e reflexivos de 14 semanas de isolamento social”. Deixo o caríssimo leitor com o Capítulo Um desses escritos.

Os primeiros dias…

“Pelo jornal o dia chega
Com as letras negras
Do que está por vir”
(Geraldo Azevedo, Letras Negras)

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Demorei uma semana para escrever algo sobre, por quê? Tentarei expor explicações, embora não necessárias para o tempo do início de minha quarentena e minha disponibilidade de cronista de um mundo cão; porém, prematuramente não hesito em dizer que esse relato é uma forma de tentar fugir do tédio, ocupar a mente, expor revolta, desabafo, grito e um exercício político, por que não? Incialmente lembro de Saint Exupéry quando sentimentalmente deixa claro o espanto com o inédito misterioso… “Quando o mistério é impressionante demais, a gente não ousa desobedecer”[1], de fato, inicialmente ficamos sem entender… extasiados, a falta de lógica nos atingiu profundamente e por quê? Porque temos o direito de ir e vir… ficamos sem lógica quando suprimidos desse direito… E aí? Será uma semana? Duas? Um mês? O noticiário, caro leitor, nos deixa pior… acredite… tem coisa pior nesse imbróglio… falaremos já…, mas fiquei sem entender e com um certo intuito de obedecer ao mistério que denota medo de codinome Corona[2]; parei! Fiquei em casa!

Na terça-feira, 17 de março de 2020, fui como religiosamente vou de segunda a sexta à escola onde leciono. Lá chegando algumas informações me foram repassadas, e juntamente com meus colegas de profissão fomos dispensados por 15 dias, a priori, ordem maior. O noticiário já dava ventanias de algo que começou na China no final do ano passado (2019). Incialmente ficamos sem entender e obedecemos ao mistério que denota medo. Da Itália notícias chegam que nos fazem remexer de algum escombro da memória uma sombra de The Walking Dead[3], mas vim pra casa, esmiuçar notícias, ler fakes, algo que chamam verdades, nesse teatro de nome mundo; vídeos, alusões à religião, explicações científicas, enfim… um mosaico de coisas: mortes, contaminados, profecias, fim dos tempos, remédios, vacinas, possibilidades, teoria da conspiração e ela, é claro…. a “politiquinha” nossa de cada dia… aliás, politicalha, melhor…

Na quarta-feira, 18, embora já um pouco temeroso com o noticiário da TV e Net, tive que ir buscar mantimentos que não mais tinha em casa. Moro com minha mãe, uma senhora de 65 anos, fato que me preocupou, pois segundo o noticiário ela consta do grupo de risco. Sou filho único, moro com ela, um cachorro, alguns insetos e às vezes bichos que reclamam o direito de posse do espaço, que antes do terreno ser vítima da especulação imobiliária era deles, estes também são vítimas. Mas não era isso que eu queria falar… voltando; fui com um receio ainda incauto, mas fui, precisava, então fui a um supermercado, comprei os mantimentos, não muitos, só pra uma semana, pois era também uma recomendação do politicamente correto, um sentir-se da causa, um sentir-se responsável, uma empatia, um cuidar do outro, essas coisas que de tanto muitos falarem, embora poucos entendam, ficam infelizmente vulgares, a despeito da imensa importância. Comprei, voltei pra casa. Fiz umas paradas pra comprar água de coco pra minha mãe e outras peraltices… depois conto… Então… os outros dias 19, 20, 21,22, 23, 24 e hoje 25, quarta-feira, que escrevo essas linhas, foram de leituras, filmes, séries, café, consumo de mais notícias e enquanto observador atento da cena percebi a representação da politicalha…

As leituras se deram ou continuaram por um livro de Análise de Discurso, ótima leitura, deu até pra perceber muita coisa na mídia por essa leitura. O título é homônimo, Análise de Discurso: Princípios e Procedimentos de Eni Pulcinelli Orlandi, recomendo, algo básico, mas necessário para início de estudo da temática em título. Depois fui reler Hamlet, de Shakespeare, de fato The Bard[4] não só viu, mas entendeu e sentiu a teatralidade do mundo…. nada de conspiração nos moldes modinha… O poeta Inglês percebeu o fingimento, a representação de papéis para um certo fim pessoal… Polônio é bem isso. Em seguida, ainda tomado pela curiosidade pelo The Bard, comecei “O que aprendi com Hamlet – Porque o mundo é um teatro” de Leandro Karnal com Valderez Carneiro da Silva. Interessante análise, até onde li, algo necessário para aprendermos em meio ao teatro mundo. Depois… digo, hoje, comecei a ler uma biografia do próprio poeta, lógico, ainda em Shakespeare, mas ainda não terminei… Aí fui aos filmes e séries… Assisti a “O poço (2019)” um filme meio que perturbador, na Netflix, muito bom, mostra como podemos viver em meio à disponibilidade de comida pra uns antes de outros, vou explicar: é uma prisão vertical, em andares, o elevador desce ao subsolo uma vez por dia e vai baixando por conta de 333 níveis. As celas dispostas uma após a outra no subsolo como um prédio, de maneira tal que os debaixo não conseguem subir pelo quadrado aberto no meio das celas, por onde um elevador começa a descer de um compartimento antes da Cela Um com a comida. A comida, dizem os detentos, é suficiente para alimentar até o último nível, mas os dos níveis superiores comem tudo antes que chegue ao final. Se qualquer detento inventar de guardar comida, a temperatura no andar de sua cela sobe ou esfria e é obrigado a jogar ao andar debaixo, pois o elevador quadrado em forma de mesa passa no meio das celas, descendo, e os dois prisioneiros de cada cela têm pouco tempo pra comer até que o elevador mesa desça. Depois de chegar ao último nível, apenas com os utensílios de mesa, o elevador volta em alta velocidade… Se algum prisioneiro estiver olhando pelo vagão por onde desce e sobe o elevador mesa, praticamente é cortada a parte que estiver na passagem… Perturbador… muitas coisas acontecem… Cada prisioneiro pode levar para a cela, antes de ser preso, algo. Alguns escolheram facas, animais, cordas, mas o protagonista escolheu um livro, Dom Quixote. Assista, muito interessante, embora angustiante e perturbador.

Depois… deixa-me ver… continuei uma série, Prison Break, um seriado de TV muito, mas muito interessante… vou deixar o caro leitor na curiosidade… estou na quarta temporada. Então… depois… assisti a The Walking Dead, aquela série de zumbis, estou acompanhando desde o início há alguns anos, acompanho em tempo real, conforme o episódio vai ao ar, mas as gravações vão parar por conta do Corona. Terminando essa maratona audiovisual vi ainda mais um filme…, é o que tenho pra fugir do tédio, um sobre o nosso momento, algo semelhante, Epidemia de 1995 com Dustin Hoffman, Rene Russo e Cuba Gooding Jr, Direção de Wolfgang Petersen. Interessante, veja lá, buscam uma cura para um surto epidemiológico. Algo parecido?

Ainda nessa longa semana de quarentena além do que já disse fiz faxina em casa, organizei algumas poucas coisas, comprei algumas outras via serviço delivery e chegou a hora que eu não queria que chegasse… a política… sim… paralelo a isso tudo me comuniquei em grupos e com amigos por zap… normal… e me veio uma vontade de fazer um texto… Fiz e compartilhei com alguns amigos… segue o texto abaixo:

Sabe o que me veio à mente… infelizmente… a tal banalidade do mal… é… Hannah Arendt … isso mesmo. A escalada de horror que iremos enfrentar por conta de um inimigo invisível e fatal aglutinado com um chefe de estado incapaz e insensível ao sofrimento da população… Um inimigo cruel e letal e um outro entulho que só atrapalha… Esse cenário infelizmente fará com que as nossas mentes, devido ao horror, contemplem, como o entulho chefe de estado falou “Vão morrer alguns. Sim, vão morrer (…), mas não podemos deixar esse clima todo que está aí. Prejudica a economia”, é isso… iremos dependendo do caos, ficar imunes. A banalização do mal será posta, e nós postos também em indiferença. ‘Homo homini lupus’, que Deus nos guarde… Lembrei de uma indagação de um discípulo: “Não te importa que pereçamos?”, depois disso, ao acordar, Cristo fez o mar se acalmar… Mares mansos não fazem bons marinheiros… tenho fé em Deus que iremos ainda, logo, logo, voltar às nossas atividades… Boa semana a todos… FIQUEM EM CASA!
Iguatu/CE, 25 de março de 2020

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P.S: É… estou preocupado… o pior de tudo é que tem gente que acha que tudo isso é conspiração…. Deus sempre proverá!

Notas
[1] Fragmento retirado do livro O pequeno príncipe (SAINT-EXUPÉRY, 2015, p.10).
[2] Vírus que causa a Covid-19 (SARS-CoV-2), doença respiratória infecciosa.
[3] Série que retrata um período pós-apocalíptico, em que os sobreviventes buscam estratégias para se manterem vivos em um mundo dominado por zumbis”.
[4] Termo concedido a escritores de poesia.

Referências
A BÍBLIA. Tradução de João Ferreira Almeida. Rio de Janeiro: King Cros Publicações, 2008. 1110 p. Velho testamente e Novo Testamento.
ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo: totalitarismo, o paroxismo do poder. Rio de Janeiro: Ed. Documentário, 1979.
AZEVEDO, Geraldo.; NILO, Fausto. Letras negras. In: AZEVEDO, Geraldo. Berekekê. Geração, 1991. LP, CD, faixa 8.
EPIDEMIA. (Outbreak). Direção: Wolfgang Petersen. Produção: Duncan Henderson. Filme baseado no livro não-ficção de Richard Preston (The Hot Zone). Estados Unidos: Punch Productions, inc, 1995.
KARNAL, Leandro. O que aprendi com Hamlet. Leandro Karnal, Valdere Carneiro da Silva. Rio de Janeiro: LeYa, 2018.
O POÇO (El Hoyo). Direção: Galder Gaztelu-Urrutia. Produção: Carlos Juárez. Espanha: Netflix, 2020.
ORLANDI, Eni P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, [1999] 2005a.
PRISON BREAK: TV Series. Criação: Paul Scheurind. Produção: Marty Adelstein. Estados Unidos: Original film Adelstein/Parouse productions 20th century Fox television, 2005-2017.
PROGRAMA DO RATINHO. 2 Dedos de Prosa com Jair Bolsonaro. Ano 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ivLqXxTkP3M&feature=emb_logo.
SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O pequeno príncipe. 1a edição, Rio de Janeiro: Editora Escala, 2015.
SHAKESPEARE, William. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. Trad. Lawrence Flores Pereira. I ed. São Paulo: Companhia das letras, 2015.
THE WALKING dead: TV Series. Direção: Frank Darabont. Produção: Jolly Dale.; Caleb Womble.; Paul Gadd.; Heather Bellson. Transmitida no Brasil pela FOX. Estados Unidos: AMC, 2010-2020.

*Por Américo Neto