Americando

Americando: Eu não sou remoto

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Não acontece assim… esta foi lançada diante de alguém que me disse: ” por que você não escreve algo sobre o nosso trabalho remoto?”. O fato não é objetivo, mas subjetivo, escrever é algo do sujeito, embora possa ser impulsionado, até sinto o drama, o tédio, a ansiedade do trabalho remoto…, mas não é só alguém sugerir… eu até sinto a angustia, mas o texto não vem assim… pela sugestão de alguém e mecanicamente faço… não, não, não e não… não é assim… repito, até sinto, mas ninguém sente igual, somos paradoxalmente uma multidão de singularidades sentido o mesmo fato de modo próprio…
Eu sinto falta de não sair mais às 6h30 de casa. Passar no local onde tomo café, ver a movimentação dos carros, dos coletivos que levam os alunos e trabalhadores da Dakota, dos transeuntes, donas de casa, pessoas se exercitando, da acompanhante de luxo que corre na ciclovia da Perimetral, grandes nádegas e seios esculturais, além do cabelo balançando nas costas, de passar pelo portão da escola, falar com o porteiro, ver meus colegas na sala dos professores, ir ao quadro de aviso, olhar, ver no aplicativo do professor a sala que devo ir, encontrar os alunos chegando, contemplando em seus rostos o resquício da noite passada, do eco das famílias que ali estão…. Nesse momento agradecia sempre a Deus por ser alguém que eles escutam… eles anseiam por ouvir algo… e às vezes me têm como exemplo, embora eu não seja todo esse exemplo… Contemplo no espelho meu pior carrasco todos os dias…
Eu não sou remoto, eu sinto e vivo… remota é a plataforma, os formulários que preenchemos, os dados do sistema on-line e toda a força empenhada nisso de forma tão somente ordinária… como um sentir remoto, sem sentido e sem ser o sentimento…
Eu falo para você… sim… para você que desejo aqui também chamar de você mesmo em meio a outros vocês na multidão de vocês… que é alguns de nós…
Você sabe que eu sei e eu sei que você sabe… o empenho para fugir daquilo que se tem de enfrentar é adiar o sofrimento… Eu sinto muito mais quando calado, meus olhos sondam em você o ser remoto que és… e remotamente esse esforço vai findar, o sistema vai fechar e você por ser remoto e sentir assim, vai remotamente falir, pois sem sentir de fato, querendo ser sem ser, sabota-se a mente e eu tenho pena de você… eu sinto calado…, mas quando falo, não falo o que de fato sinto, mas o que sinto por você e queria que você sentisse, não remotamente, mas praticamente o que o remoto fará com os seus sentidos…
Paga-se um alto preço por não fingir, mas creio que um outro bem maior por fingir o que não é e de fato não se faz tudo no remoto…. o remoto, para os que vivem e sentem é um estado de espírito vazio, fingido e sem finalidade… Eu sinto, sofro, sangro, grito, choro, suspiro, sonho, falo sorrindo e calo…
Eu não vou fingir…. não dá, não, não é assim, remotamente eu não sou, não vivo, não sinto e nem escrevo… Eu percebo quando olho… sei que seu silêncio grita e fingir e fugir daquilo que se deve ser dito não irá te fazer inventar que não sente por toda a vida… A morte um dia irá nos beijar… eu curioso vou ao desconhecido, como Augusto dedico um verso ao primeiro verme que roer o meu cadáver…Você irá remotamente ao cemitério? Se não, saibas que vive como se fosse… teremos que encarar isso, distante da morte não vivemos… todo dia chegamos mais perto… Ouvi esses dias uma pessoa me dizendo que o casamento acabou porque não havia mais finalidade, sintonia e era sem futuro… Meu Deus… termos que basicamente são usados por empreendedores do mercado… eu acho…
Sempre alguma coisa fica por dizer, ou não dizemos totalmente como queríamos, ou covardemente alguns impõem o silêncio como resposta… outros impõem o silêncio ante uma provocação, para não oferecer ao inimigo aquilo que ele quer… Outros terminam com ponto final, embora a perfeição não seja nosso forte, a régua é passada e a conta fechada…
O remoto nos foi imposto, por um bem maior, a vida… Eu quero que você viva… viva bem feliz… embora o sentir remoto nunca te oferecerá isso… pois mesmo sem covid, muitos de vocês remotamente já viviam… e você também… em meio a um teatro de fingimento ensaiado em que eu sinto, vejo e sei… e pior: você sabe que eu sei…
Eu não sou remoto… eu sinto, vivo, algo pulsa e a vida seguramente é importante… Eu estou remoto por um bem maior… estamos assim por isso… os que carregam a empatia, o amor ao próximo…
Lembro-me do sangue na ombreira das portas… o Espírito de Deus passou e feriu todo primogênito no Egito na época de Ramsés II… eis a verdadeira páscoa que não tem coelho e nem ovo de chocolate, já que coelhos não põem ovos… conversei com um amigo sobre isso esses dias… A páscoa de hoje é remota… bem longe do significado original… é… eu sei… sou chato… ao perceber isso em alguns reflito: esse é o caminho…

“A voz resiste, a fala insiste, você me ouvirá
A voz resiste, a fala insiste, quem viver verá” (Não leve flores, Belchior).

Por Américo Neto

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