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Americando: Escrever o quê?

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No meio do que ocorre em nossas vidas, no ofício de remover escombros, esmiuçar o subsolo de nossas angústias, de refletir sobre o momento, veio-me esta interrogação… Escrever o quê? Outra ressoa como um sino de uma pequena cidade em que seu eco chega a última casa do vale, na estrema já com outra cidade… ressoa outra interrogação ainda mais instigante: por que escrevemos?

Reflito sobre o tema quando pego na pena e deixo as impressões no papel – agora mudou tudo… uma tela de alta resolução e um teclado fazem-me ver essas impressões das ideias, as quais antes era caneta e caderno – o que escrever? Política? Futebol? Religião? Coronavírus? Sobre uma paixão? Amor? Sexo? Rock? MPB? Luiz Gonzaga? Olha… muita coisa para refletir, muita coisa boa também para expor, fazer refletir um provável leitor, debater e questionar…, mas a segunda interrogação me perturba mais do que a primeira, título deste fragmento… Por que escrevemos?

Eu estava em um supermercado, o único lugar que saio em meio a esses tempos pandêmicos, de fato a quarentena e o trabalho remoto ainda estão em voga para mim; lá me deparei com um criança, um garotinho, o mesmo me olhou, eu idem, e ele me ofereceu um bombom. Fui pego de surpresa, pois não sou um indivíduo tão sociável para uma criança falar, mas não sei por qual razão aquele garotinho me ofereceu uma bala. Eu agradeci a gentiliza, como estava tomando café, com a máscara dependurada em uma das orelhas, para evidenciar a presença do inimigo biológico, recusei educadamente e disse que estava tomando café, mas lhe devolvi um obrigado bem sonoro… Ele riu, percebi pelos olhos, pois o mesmo estava com a tal máscara. No mesmo instante os pais dele chegaram à mesa na qual ele estava, falaram comigo, respondi com um “opa!” e terminei meu café para recolocar a máscara.

Fiquei intrigado com a educação daquele garotinho e não sei o que o levou a me oferecer um bombom. Como já disse, não sou sociável, gosto de ouvir, observar e de fato nos últimos anos tenho gostado da solidão, embora seja solitário, sozinho não é possível ser feliz, já disse um grande poeta… Devo dizer que até me arrependi de não ter recebido aquele bombom… ,mas passou… não recebi, respondi com educação e lhe demostrei empatia e a vida seguiu…


Voltando a segunda interrogação – Por que escrevemos? – devo dizer que é à priori uma vocação para muitos, uma vontade de expor coisas simples da vida que acontecem em um supermercado, em um ônibus, em uma igreja, em um estádio de futebol, agora nem podemos mensurar tanto tais acontecimentos, nem preciso explicar, mas a razão para escrever creio que vem da vontade de expressar tanto o sublime como em uma música do Belchior tipo “Coração Selvagem”, como falar de uma tatuagem que você viu na perna ou no braço de alguém, ou ainda daquelas madeixas, daquele rosto, daquela última vez que você encontrou com ela/ele, daquela última mensagem… ou de uma simples conversa aleatória com um garotinho educado em um supermercado.


Sobre o título do texto – Escrever o quê? – devo sinceramente dizer que nos últimos tempos, aqui pelos trópicos, não há coisas muito interessantes para escrever não… o país reflete em sua cultura o estado espiritual que soe na política, no social, nas instituições… vejo que algo fora de lógica pretende ser lógica fundamental de algo sem fundamento, logo creio que coisas simples do nosso cotidiano banal possuem mais apresso deste que pega a pena, do que a falta de lógica que impera no momento aliada à esta tragédia nacional de codinome covid, mas que evidencia com toda a comprovação científica como o povo é tratado…

“Plunct Plact Zum
Não vai a lugar nenhum!
Plunct Plact Zum
Não vai a lugar nenhum!”
(O Carimbador Maluco, Raul Seixas).

*Por José Américo Rodrigues Neto

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